O empreendedorismo foi sequestrado. Está na hora de o libertarmos.
FACUNDO GUERRA
O empreendedorismo foi sequestrado. Está na hora de o libertarmos.

Há pouco mais de um ano, enquanto tentava, desesperadamente, uma reunião com o dono de uma das empresas que detém dezenas de milhares de imóveis Brasil afora, na tentativa de mendigar uma melhor condição de preço para o aluguel de um imóvel que estava abandonado há décadas — veja a ironia — eu fui surpreendido por sua secretária me dizendo que o “empreendedor estava de férias com a sua família na Europa e só retornaria ao Brasil em 2 meses”.

Tive um choque. Não porque eu não conseguiria negociar pessoalmente o valor do aluguel, mas por ter ouvido a secretária se referir ao bilionário como empreendedor. Espera, o empreendedor ali era eu. Como assim, ela se referia àquele septuagenário pornograficamente endinheirado como empreendedor?

A ironia é que nossa cultura nunca esteve tão obcecada por empreendedores, seja por conta do teórico sucesso de instagram destes que se arriscam em empreender, seja porque o campo do empreendedorismo nunca esteve tão minado por armadilhas que prometem sucesso rápido e receitas milagrosas — basta ir a uma livraria que você verá inúmeros exemplos de empreendedor de livro que coloca um f*** na capa e vende receita de sucesso, sem nunca ter levantado sequer um tijolo na vida.

São duas as chaves para entender o corrompimento pelo qual a ideia do empreendedorismo passou. De um lado, a ideia romantizada do empreendedor norte-americano, o “self-made man”, sonhadores e heróis ousados das últimas décadas, homens brancos, heterossexuais, jovens e potentes, saídos das melhores universidades gringas, seres que tem em si cristalizada a criatividade e são inventores do futuro da humanidade. Este é o empreendedorismo ousado e sexy do Vale do Silício, liderado pela tríplice de Jobs, Musk e Zuckerberg; os jogadores de alto risco e investidores implacáveis ​​de “Shark Tank”; e o mais recente desistente da Ivy League a lançar uma start-up “disruptiva” e conseguir um perfil bajulador na capa de revistas de negócios, junto com algumas centenas de milhões de dólares em financiamento de capital de risco. Esse é o sonho norte-americano atual que a cultura usa de molde para dar sentido à palavra empreendedorismo. 

Já do lado brasileiro, esse empreendedorismo passa por uma filtragem e ganha tintas religiosas.

No lugar onde a cultura do coach, que no Brasil no mais das vezes é promovida por pessoas sem qualquer formação que colocam um “quântico” e um certo altruísmo de fachada nas técnicas que empregam para aconselhar terceiros, a farsa da meritocracia e a teologia da prosperidade, aquela que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos e que a fé — e as doações ao pastor — sempre aumentará a riqueza material do fiel, se encontram, ali encontramos o empreendedorismo à brasileira, este quase-ofício que usamos para nos guiar no momento que decidimos montar nossos negócios.

Acredite: não será o propósito que nos guiará para o empreendedorismo depois da covid. Será o desespero mesmo, esta que é uma razão muito legítima para se empreender. Prensado por muitos obstáculos, o futuro empreendedor, aquele que se lança neste arriscado caminho de empreender, precisa se livrar dessa ideia de empreendedorismo que foi embalada para nosso consumo de livros e cursos inúteis. Precisa entender que o empreendedorismo, mais além de colocar feijão na mesa, único “propósito” que acho inquestionável, é uma força de transformação social que talvez seja a última que possa nos tirar do buraco histórico em que nos encontramos.

Se por um lado não podemos mais contar com esse desgoverno e a ópera-bufa que virou a política brasileira, do outro tampouco podemos depositar nossa confiança sobre o futuro nas corporações, que são guiadas por um único imperativo: fazer lucro a despeito das consequências. É em empreendedores reais — aqueles que têm um cafezinho, tem a mercearia no seu bairro ou a sorveteria onde você vai com a sua família — que existe uma chance de transformação social, desde que parem de dar ouvidos a estes discursos que fazem do empreendedorismo parecer uma espécie de karaokê com os maiores hits dos discursos vencedores dos Elon Musk da vida.

FACUNDO GUERRA
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